Outros 22% mudaram de pardo para preto ou preto para pardo, mudança sem efeito prático do ponto de vista da distribuição de recursos do fundo eleitoral. Outros 2% mudaram de branco para preto.
Na capital paulista, a reportagem localizou ao menos quatro vereadores que, na comparação com a eleição de 2016, tiveram mudanças na cor.
De pele clara, o vereador Caio Miranda (DEM) mudou sua cor de branca para parda. Ele disse que o preenchimento, em 2016, foi feito pelo partido.
“A minha mãe era branca e meu pai é um nordestino, filho de indígena com africano, e com judeu ainda. Tem uma mistura super grande. Então, eu sou pardo. Se eu falar que sou branco, por mais que eu pareça branco, vou estar negando a minha raiz”, diz ele.
Miranda diz que a mudança não teve relação com as cotas e cita o fato de já em 2018 ter se descrito como pardo na campanha a deputado federal.
O vereador Alfredinho (PT) mudou sua cor de pardo para negro. “Com a consciência que a gente passa a ter, eu posso dizer que sou uma pessoa negra. Eu tenho uma avó que foi descendente de escravos”, diz ele, que criticou eventuais mudanças devido à cota. “Acho que é muito ruim alguns que não tenha a cor se declarar apenas por causa da cota.”
Já o vereador paulistano Adilson Amadeu (DEM) afirmou que pediu retificação sobre sua mudança de cor, de branco para pardo. “Foi um equívoco na hora do preenchimento da ficha. Já solicitamos inclusive ao partido um pedido de retificação para que seja corrigida a informação.”
Segundo levantamento da Folha, os partidos que mais tiveram candidatos que mudaram são PSD (1.829), MDB (1.787) e PP (1.685). Por estado, são Minas Gerais (3.143), São Paulo (2.308) e Bahia (2.095).
Na Bahia, um dos estados de maior população negra do país, 33% dos candidatos trocaram declaração da cor da pele entre as eleições de 2016 e 2020, incluindo candidatos a prefeito de quatro das principais cidades do estado.
Em Barreiras, oeste do estado, o deputado federal Carlos Tito (Avante) disputará a prefeitura declarando ser pardo. Há quatro anos, ele afirmava ser branco.
Já em Camaçari (47 km de Salvador), o prefeito Antônio Elinaldo (DEM) declarou-se como preto na eleição deste ano e pardo na anterior. O mesmo aconteceu na cidade vizinha de Lauro de Freitas, onde a prefeita e ex-deputada federal Moema Gramacho (PT) também passou a classificar como preta.
“Nunca me senti identificada com esta cor parda, por isso busquei resgatar a minha identidade. Foi autoafirmação mesmo. Sou uma negra, filha de mãe branca e pai negro, nascida no Pelourinho”, afirma Moerma Gramacho.
Doutor em ciência política, o professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Cloves Oliveira afirma que há duas hipóteses para as mudanças entre 2016 e 2020 de candidatos que se autodeclaram como pretos ou pardos.
De um lado, é crescente o número de pessoas, sobretudo entre os mais jovens, que tem se reconhecido como negro, resultado direto de mobilizações de movimentos da sociedade civil.
Esta premissa encontra respaldo nos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apontam que 19,2 milhões de brasileiros se declararam pretos em 2018, um crescimento de 32% comparado a 2012, quando este número era de 14,5 milhões.
Por outro lado, com o avanço de políticas públicas de reparação, o declarar-se pardo ou preto ganhou uma dimensão simbólica no campo político: “A sociedade passou a valorizar este sentimento de pertencimento”, afirma o professor.
O caso de Salvador é bastante didático neste sentido. Uma das cidades com maior proporção, a capital baiana nunca elegeu um prefeito negro. O tema, contudo, ganhou centralidade na pré-campanha, a partir de uma campanha de entidades do movimento negro por mais pretos e pardos na disputa pela prefeitura.
Também houve um movimento de candidatos brancos ao Executivo que buscaram pretos ou pardos como companheiros de chapa: “É artifício de lideranças partidárias para dar uma ênfase na ideia de que essas organizações não são racistas”, destaca Cloves Oliveira.
Em sua avaliação, a disputa por espaços de protagonismo dentro da estrutura dos partidos não deve ser fácil. “Sem recursos, tempo de televisão e ferramentas para que os grupos sub-representados consigam expor as suas ideias, será impossível corrigir esta distorção.”
Cientista político da FGV, Marco Antonio Teixeira afirma que uma combinação de fatores pode ajudar a explicar as mudanças nas declarações de cor.
“Têm ocorrido situações em que pessoas começam a se reconhecer enquanto a condição étnica que antes não se identificavam. Mas teve aí recentemente a decisão sobre a alocação de recursos [com cota para negros] e é preciso ver se houve uma onda de alterações [na identificação]”, diz.
O advogado Rodrigo Pedreira, especializado em direito eleitoral, acredita que haverá casos de brancos identificados como negros e que isso deverá ser fiscalizado, embora ainda não tenha ficado clara qual seria a punição.
“Acredito que virão à tona, tanto por adversários quanto pelo Ministério Público quanto por militantes”, disse.
A reportagem encontrou candidatos estreantes cuja declaração de cor pode gerar confusão.
O empresário João Paulo Demasi, candidato a vereador em São Paulo pelo PSOL, afirma que um eventual aumento de candidaturas negras se dá “por uma mudança do próprio entendimento do ser humano em se identificar negro”.
Ou seja, por uma nova ou autoaceitação, segundo ele, mais do que por influência da nova regra eleitoral, que não estava colocada quando os partidos iniciaram a montagem de chapas, ainda no primeiro semestre.
Demasi, marido da apresentadora Bela Gil, é filho de mãe negra e pai branco e se identifica como preto em sua primeira eleição. Por ter cabelo liso, ele diz que dá explicações.
“Não é meu nariz, minha boca, meu cabelo que me identificam. Isso tem que mudar até pela educação. A identidade é uma percepção minha, não uma percepção sua”, afirma.
“Minha mãe é negra, é baiana. Eu era o menino preto numa escola de brancos. Eu sofri. Vi minha mãe chorar e chorei pela minha mãe, eu tenho a dor. Eu ouço ‘só podia ser preto’ desde os meus 12 anos. Me identifico preto desde criança”, diz.
Demasi afirma, portanto, que sua declaração como preto não tem a ver com a nova regra eleitoral. Ele argumenta, porém, que os partidos deveriam se propor a seguir a divisão igualitária de verba entre negros e brancos mesmo que o plenário do STF ao final decida que a regra não vale em 2020.
Marcos Medeiros, candidato a vereador pelo PT, afirma que também sofreu questionamentos na pré-campanha por ter se declarado negro. “Eu sou descendente de negros e me sinto negro, essa é a minha identidade. Às vezes há um preconceito em se assumir negro”, diz.
Ele afirma que seu despertar aconteceu em 2017, quando sofreu racismo em viagem a Santa Catarina.
”Por mais que a sociedade diga você é isso ou aquilo, você que tem que se determinar”, afirma ele. Para o candidato, o aumento de candidaturas negras é explicado pelo fato de pretos terem a consciência de que é preciso se lançar à política para ter voz, e não devido à fixação da cota financeira.